O senhor João e a senhora Rosa tinham já muita idade. Contudo, mantinham viva e firme a sua grande amizade, que nascera nos dias em que eram ainda crianças.
- Lembras-te, de quando vínhamos para aqui brincar? – perguntou o senhor João à velha amiga, numa tarde em que estavam ambos sentados debaixo daquela árvore, tão antiga que ninguém sabia ao certo os anos que ela tinha.
- Se me lembro! – suspirou a senhora Rosa. – E bem me recordo da tua mania, em subir ali acima, à cata de ninhos de pardais. Malandro, que tu eras!
Agora, que viviam sós – ambos tinham já perdido os seus esposos e os filhos haviam abalado para longe –, que os muitos anos vividos os deixara de cabelos brancos e de passos vagarosos, os dois idosos mantinham aquele hábito: desfiar lembranças sob a sombra generosa daquela árvore. Mal a primavera abria os braços ao tempo gostoso, era vê-los ali, como meninos de outrora a procurarem os seus brinquedos em baús antigos. Sim, chega a altura em que, as recordações são, tal qual brinquedos mágicos!
Certo dia – ou melhor: certa tarde, as suas doces conversas foram interrompidas pelo mau humor do senhor António, vizinho rabugento que vivia mesmo em frente da frondosa árvore.
- Tenho de mandar podá-la! As suas flores causam-me alergia – reclamou o homem, no jeito rezingão de quem tem raiva da vida.
- Podá-la!? – surpreendeu-se a senhora Rosa. – Você deve estar a brincar!
- Brincar coisa nenhuma! Quando vem a primavera, não paro de espirrar por causa das flores dessa árvore – continuou o senhor António.
- Vai tirar-nos esta deliciosa sombra? – perguntou o senhor João, que nem queria acreditar no que estava a ouvir.
- Se querem sombra, arranjem um chapéu – reclamou o mal-humorado, recolhendo de seguida a sua casa e batendo a porta com estrondo.
Os outros, para não desanimarem, comentaram que aquela reclamação, certamente não passava de um desabafo passageiro.
Porém, dias depois e para enorme e triste surpresa de ambos, quando chegaram ali, depararam com a árvore despida de folhas e de flores. Aquela sua velha amiga estava, agora, transformada num tronco choroso, segurando alguns galhos completamente desnudados. Era como se uma tempestade impiedosa tivesse passado por ali, e levado para longe, toda a sua verdura e todo o seu perfume.
- Como conseguiu o senhor António, que alguém fizesse isto à nossa árvore? – perguntou a senhora Rosa, num fio de voz.
- Ora, como conseguiu! Ele é amigo do presidente da junta, e consegue o que quer – respondeu o senhor João, muito ciente do que estava a dizer.
O mal já estava feito, e nada o podia remediar. Por isso, os dois amigos sentaram-se debaixo da árvore despida de folhagem e de flores, e, como ela, mergulharam numa profunda tristeza.
Após uns momentos de silêncio, numa voz tão lastimosa que teria comovido quem a escutasse, a senhora Rosa lamentou:
- Que triste está a nossa árvore! Assim, tão despida e solitária, via morrer de desgosto!
Na altura em que ela dizia isto, o vento, a passear por ali nesse momento, agarrou nestas palavras e levou-as nas suas asas. Depois, lá longe soltou as palavras, que esvoaçaram como pétalas de uma mensagem.
Por um acaso – ou talvez não –, naquele espaço esvoaçavam também um bando de lindos pássaros, muito coloridos. Tão bonitos eram, que, quem olhasse para eles, logo sentia o próprio olhar envolto numa onda de festa. Na verdade, eram a coisa mais linda de se ver. Contudo, ao contrário das pessoas demasiado bonitas que tantas vezes são muito vaidosas, estes pássaros tinham uma generosidade tão grande quanto a sua beleza. Assim, mal escutaram aquela mensagem, e depois de perguntarem ao vento onde vivia a triste e castigada árvore, decidiram em coro:
- Vamos viver nela, e enchê-la de cor e alegria!
Se bem o decidiram, melhor o fizeram!
Tão velozmente quanto as suas asas multicores o permitiam, cruzaram o céu, em busca da sua nova morada.
Quando lá chegaram, o senhor João e a senhora Rosa ainda comentavam o azar da árvore, que conheciam desde que eram crianças.
- Vai levar muito tempo, até que volte a ficar frondosa, verdejante e florida – lamentou homem.
- É! Já não será para os nossos dias! – concordou a amiga.
Nesse instante porém, o chilreio dos pássaros coloridos, o agitar festivo das suas asas lá em cima, sobre a árvore despida, fez com que os dois amigos erguessem a cabeça para o céu e contemplassem aquele milagre.
O velho tronco agitou-se com doçura e abriu os seus galhos como braços que recebem um amigo, pois sentiu que a vida estava de regresso para si.
Agora, os dois idosos podem já não ter sombra para desfrutar, contudo, a festa e a alegria daqueles pássaros coloridos, é quanto basta para os deixar felizes.
O senhor António?! Esse reclama pelo piar das aves, mas nem o presidente da junta consegue fazer nada. Podem agitar paus para enxotar os pássaros, mas eles regressam sempre, horas depois, para encherem de vida aquela árvore secular.
História de D.M.F., a partir de uma ilustração de Andreia Ribeiro
Escritor Daniel Marques Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário